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O Fantasma do Jardim Canadá 

 

por Victor da Rosa

1. Digamos que a instalação pública que Roberto Freitas apresentou como resultado do período de residência no JA.CA, em Minas Gerais, seja exatamente o oposto de uma instalação pública. Primeiro porque a instalação não possui qualquer caráter monumental,

como acontece com grande parte das obras públicas, embora não todas, naturalmente. Mais do que isso, trata-se de uma instalação

invisível, ou melhor, camuflada, escondida na paisagem, fazendo do próprio desaparecimento um de seus principais assuntos. De resto, a instalação foi concebida não para causar qualquer tipo de prazer e nem sequer reflexão, e sim estranhamento e quem sabe até mesmo algum dano psicológico.

2. Desde que passei a acompanhar a trajetória de Freitas, creio que por volta de 2006, o artista já fazia espécies de máquinas improdutivas, a partir de certa compreensão do pensamento de Duchamp, que poderia ser resumido da seguinte maneira: o artista não realiza obras, mas inventa procedimentos para que as obras possam ser realizadas sozinhas. Por um lado, as máquinas de Freitas podem ter formas, dimensões e mesmo efeitos bastante variados, gerando sons, imagens e/ou movimentos geralmente

repetitivos, sempre inexpressivos, enfim; por outro, elas não possuem qualquer função útil. Lembro de uma instalação que, ao usar aproximadamente 2 mil metros de fiação elétrica, e ocupando duas salas inteiras de um Museu, era capaz de produzir apenas uma imagem embaçada em um pequeno monitor voltado, aliás, para a parede.

3. De lá pra cá, em sua pesquisa, o artista descobriu novos mecanismos, sendo que o principal deles consiste na possibilidade de que estas máquinas, através de certos dispositivos de percepção, possam se “relacionar” com outras máquinas ou mesmo com pessoas. Para isso, o artista teve que estudar novos algoritmos e aperfeiçoar alguns conhecimentos em programação de computadores. Suas máquinas mais recentes, diferente das anteriores, não apenas são capazes de notar aproximações, mas também produzem ações elas próprias. Dessa maneira, duas máquinas podem trocar golpes entre elas, e inclusive se defender, como é o caso de Cedro vs Caxeta, assim como só mostram do que são capazes caso o espectador se comporte adequadamente, a exemplo de Três, instalação realizada recentemente no SESC Pompéia.

4. A máquina realizada para o JA.CA, Fantasmatográfico, também possui tais aptidões, com a única diferença de que foi concebida para o espaço público, ou seja, “em algum lugar do bairro”. A instalação, nesse caso, funciona apenas das 23h às 2h (por assim dizer, é seu horário de visitação) e consiste em um objeto cinético que, com a condição de que alguém caminhe pela região, projeta

imagens e sons (no caso, um cão ladrando) próximo ao infeliz. De dia, inclusive pra não dar muito na vista, o dispositivo recarrega as baterias através de energia solar. Como os fantasmas, o equipamento se esconde muito bem no topo de uma árvore, protegido por uma estrutura que tem a aparência de um coco e, portanto, não corre o risco de ser nem mesmo destruído pela natureza. O objetivo de

funcionar em tal horário, por sua vez, é bastante claro.

5. Em todo caso, se tudo der certo, o fantasma projetado pela instalação vem se confundir a outros fantasmas que, segundo pesquisa realizada pelo artista, povoam o imaginário do bairro. Assim como vem nos lembrar, através também da citação aos primeiros cinematógrafos, de uma intrínseca relação entre imagem e morte, arte e aparição. Seja como for, assim como a arte, os fantasmas serão sempre estranhos, salvo engano, e por isso seguirão nos ensinando que o único jeito de saber que estamos vivos é através da nossa capacidade de surpresa, pasmo e susto com o mundo seja com o mundo da arte ou o mundo dos fantasmas.

Caminho para um fantasmatográfico no Jardim Canadá
(Fragmentos reeditados de anotações no diário) Notas da residência no JaCa

Chegar em Belo Horizonte é dramático, já do avião se pode perceber a particularidade da paisagem. (Um mar de montanhas cerca a cidade e, no meio da paisagem de serra e aparente as grandes feridas abertas pelas mineradoras.) : um mar de montanhas com grandes feridas abertas pelas mineradoras.

Entre a serra do Rola Moça, o Retiro das pedras e uma gigantesca extração de minério de ferro, o Jardim Canadá é um repetido "mar e particularidades". Uma periferia onde a pobreza evidente compartilha espaço com galpões industriais e lojas de produtos para ricos, como quadriciclos e obras de arte. O resto parece tão normal no contexto das desigualdades vertiginosas em que vivemos.

O Primeiro problema que me intrigou foi o da mina em atividade localizada a trezentos metros do meu novo espaço de trabalho. É possível avistar a mina praticamente de todo o bairro com exceção dos lugares mais baixos sua presença se faz sentir pelas detonações, que ocorrem nas terças e quintas feiras úteis.

Uma mineração é o exercício de subtrair uma paisagem, desmontá-la com explosivos e colocá-la aos poucos em grandes caminhões, que parecem minúsculos quando dentro da mina. O segundo exercício é o de transferir a montanha desses caminhões para trens ainda maiores. Os trens vão para o litoral e a montanha ruma nos porões de navios até a China; esse é o terceiro exercício.

Enfim a atividade econômica mais importante do Jardim Canadá é enviar sua paisagem para China que, em troca, paga pouco mais de 13 centavos de dólar o quilograma. Parece um grande modelo de negócio, muito lucrativo. Mas o Jardim Canadá é pobre, e sua população, que já tem pouco, vai sendo destituída da própria referência geográfica. Me pareceu inelutável que os buracos na paisagem se transformem em somáticos buracos no corpo de quem foi destituído de seus pontos de referência geográfica. Imagino que como estratégia de sobrevivência os habitantes da região preencham ausências por conversas, religião e consumo. No quesito conversas, que era o que eu podia compartilhar com eles, morte e assombração foram os temas mais recorrentes.

Não sei se acredito em fantasmas, mas eles habitam o Jardim Canadá, principalmente através das narrativas cotidianas. Para cada pergunta feita sobre paranormalidade surgiram uma série de narrativas fantasmagóricas, elas parecem brotar das bocas menos prováveis. Outro fato certo é que ao se referir a fantasmas há um ranking da fama: acho que o mais citado é o da Moça Fantasma seguido pelo da Serra do Rola Moça e Maria Papuda. Descobri outros tantos entes vivendo no plano dos boatos de bairro. Interessante pensar que todos esses fantasmas, que estão onipresentes no imaginário local, quase sempre são de aparições que acontecem nas ruas. Poucas vezes ouvi falar de fantasmas

assombrando casas particulares, suponho que falando de fantasmas públicos, as histórias se tornam mais críveis e divertidas sem expor a intimidade dos lares tão preservada pelos mineiros.

Outra curiosidade da região é que mesmo não acreditando em paranormalidades, muitos cidadãos já foram benzidos ou submetidos a práticas espirituais. Eu mesmo aproveitei a oportunidade e me benzi também, afinal nunca se sabe.

Andava pelo Jardim Canadá como um gringo, acho que por esse motivo toda conversa começava com desconfiança, mas felizmente não demorava muito para que um papo surgisse. Aparentemente é do feitio do morador local parar o que faz para bater um papo, dispersar dos afazeres para contar um caso. Aproveitei a carona na simpatia mineira para explorar os meandros de sua linguagem falada, são muitas as narrativas cotidianas do bairro, e parece que os assuntos correm rápido. Novidades são compartilhadas ao sabor do vento em redes de história oral.

fiz alguns desenhos e uns vídeos falando da mina e das personagens locais. Construção de um dispositivo fantasmográfico.

Fiquei com muita vontade de usar essa orgânica rede de história oral de alguma forma, então me ocorreu montar um dispositivo que, baseado no azar, no acaso, contasse uma pequena narrativa a um transeunte improvável. Esse dispositivo ficaria camuflado na paisagem num local de muito pouca passagem, durante os dias ele ficaria em standby, carregando suas baterias com células fotovoltaicas e, de noite, das 11 as 2 da manhã, o objeto entraria em atividade, sensoriando a passagem de pessoas pela região; caso uma pessoa passasse nesse horário, na direção certa ao dispositivo, tal qual uma armadilha ativada, o aparato projetaria uma aparição. Com tempo suficiente para que o passante visse e ouvisse, porem, com tempo de menos para ele investigasse a origem da projeção e do som; a máquina produziria um motivo para que novos boatos aparecessem no bairro.

Através dessa projeto de phantasmagoria seria introduzido um caso anormal no cotidiano das conversações. Uma espécie de discurso que hacker, se pensarmos a linguagem falada como uma espécie de programação. Nesse caso o dispositivo funcionaria como um desserviço à população a favor da crendice, contra a norma, ligada a noção de progresso que dá mais importância ao lucro que a vida.Frames do vídeo realizado na residência

círculo                                                                                  full hd - dual screen projection
 

O minério de ferro sai das montanhas ao redor do JaCa 24 horas por dia, 7 dias por semana. A mina não pode parar porque a sede por matéria prima dos chineses e do mundo não para. A montanha vai sendo subtraída (no ritmo da capacidade de coloca-la) em caminhões, trens e barcos rumo as siderúrgicas chinesas. Esse longo processo vai mudando o corpo da paisagem em escalas monumentais, difícil de acreditar para quem nunca esteve dentro de uma mina.

Mas nada é em vão, o minério vira aço e o aço volta em outros navios, em escalas tão impressionantes quanto a da montanha subtraída. Ironia achar alguns carros voltando a ser oxido de ferro a uns 300 metros de profundidade dentro de uma ribanceira na serra do Rola Moça. Como elucidação de um ciclo bizarro a terra remexida reivindica a suas entranhas o material que lhe foi subtraído. Mas a maioria do material que saiu da montanha após alguns anos estará em aterros sanitários, após cumprir o seu destino de movimentar rios imateriais no mercado financeiro.

IMG_9029.jpg

As Gravida, os novinho e os podrão.   Video mapping on wood in a dirty little corner

fullhd mapeado em toquinhos de madeira em um cantinho sujo 3min

Atualmente se fala de um problema de saúde pública no Jardim Canadá: cães abandonados. Estimativas garantem que o número chega próximo de 1000 cães. Parece que o Jardim Canadá virou um local em que o Belo-horizontino se livra de seus animais domésticos, deixando-os a sua própria sorte. O resultado é que os cachorros andam pelo bairro em chusmas, que ladram, uivam e adoecem ao longo de todas as noites frias do bairro.
Interessante que por causa do pó vermelho da mina os cães vão se ruborizando, hoje as matilhas vermelhas se multiplicam em ninhadas que já nascem condenadas ao anunciado controle desta dita zoonose.
Me disse um empresário que investe no bairro que em breve as favelas também serão “limpas”, que "o bairro é o futuro do crescimento imobiliário da cidade de Belo Horizonte". “Investir no Jardim Canadá é garantia de bom negócio” garante esse visionário do progresso.

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